Responsabilidade civil, administrativa e criminal no caso Brumadinho

Na última sexta-feira (25/1), a barragem 1 do complexo Mina do Feijão, da mineradora Vale, rompeu-se na cidade de Brumadinho (MG), gerando extensos impactos ambientais, sociais e econômicos e causando grande comoção nacional e internacional. Quais as consequências jurídicas do evento? Quem deve responder pelos danos causados? Qual a responsabilidade da empresa e seus dirigentes, dos poderes públicos ou de terceiros?

  • Rafael Martins Costa Moreira
  • 01 FEBRUARY 2019
  • News
Responsabilidade civil, administrativa e criminal no caso Brumadinho Minério de ferro

Este artigo, elaborado em formato simples de perguntas e respostas, busca explorar as conclusões fornecidas pelo sistema jurídico brasileiro para as principais indagações sobre o regime da responsabilidade em desastres ambientais como o de Brumadinho, sem a pretensão de antecipar qualquer culpa, tampouco de tecer considerações sobre processos em andamento ou decisões judiciais proferidas.

1. Quais as consequências jurídicas decorrentes do rompimento da barragem?

Pelo artigo 225, parágrafo 3º da Constituição Federal, as atividades e condutas lesivas ao meio ambiente podem gerar responsabilização civil, administrativa e criminal, sem prejuízo de possível condenação por improbidade ambiental [1] e reparação de danos individuais às vítimas e trabalhadores.

2. É preciso comprovar a culpa da Vale para obrigá-la a reparar? Ela pode se eximir alegando força maior, caso fortuito, fato da vítima ou de terceiro?

O artigo 14, parágrafo 1º da Lei 6.938/81 estabelece a regra da responsabilidade objetiva por danos ambientais, ou seja, o degradador deve indenizar e reparar os danos independentemente da existência de culpa (negligência, imprudência ou imperícia).

O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) acolheu a teoria do risco integral, pela qual "todo e qualquer risco conexo ao empreendimento deverá ser integralmente internalizado pelo processo produtivo, devendo o responsável reparar quaisquer danos que tenham conexão com sua atividade" [2]. Assim, na visão da corte, é descabida a invocação, pela empresa responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade para afastar sua obrigação de indenizar, e, em decorrência do acidente, deve recompor os todos os danos materiais e morais causados [3]. O poluidor responde mesmo em caso de dano involuntário, e não se exige previsibilidade ou má-fé de sua parte, pois é suficiente um enfoque causal material.

Quanto à relação de causalidade para danos ambientais, a jurisprudência tem aplicado a "teoria da equivalência das condições" ou conditio sine qua non, segundo a qual, havendo "mais de uma causa provável do dano, todas serão reputadas eficientes para produzi-lo, não se distinguindo entre causa principal e causas secundárias, pelo que a própria existência da atividade é reputada causa do evento lesivo"[4]. A exclusão do nexo causal pode ocorrer apenas na presença de evento externo, imprevisível e irresistível, que não guarda relação com a atividade. Jamais o fortuito interno serve ao afastamento da responsabilidade[5].

3. A Vale pode se eximir da responsabilidade em razão de prévio licenciamento, existência de laudo atestando a segurança da barragem ou por eventual fato da natureza?

A responsabilidade pela degradação ambiental independe de culpa ou má-fé. De acordo com o STJ, essa responsabilidade tem como "pressuposto a existência de atividade que implique riscos para a saúde e para o meio ambiente, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato que é fonte da obrigação de indenizar, de modo que, aquele que explora a atividade econômica coloca-se na posição de garantidor da preservação ambiental, e os danos que digam respeito à atividade estarão sempre vinculados a ela"[6]. Por isso, o explorador não se exime do dever de reparar por caso fortuito interno, relacionado com os riscos da atividade. Assim, a concessão de licenciamento ambiental, por si só, não afasta a responsabilidade pela reparação do dano ambiental, como decidiu o STJ[7], tampouco a omissão do Estado na fiscalização[8].

Em 2007, em evento semelhante ao de Brumadinho, ocorreu rompimento de barragem e vazamento de lama tóxica na cidade de Miraí e Muriaé, também em Minas Gerais. Nesse caso, o STJ manteve o dever de indenizar, embora o resultado tenha derivado de "fato da natureza" (deslizamento de terra após chuvas torrenciais), que provocou rompimento de poliduto e poluição das águas[9].

O STJ reputa que, para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano ambiental, "equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem deixa fazer, quem não se importa que façam, quem financia para que façam, e quem se beneficia quando outros fazem"[10]. Ademais, o artigo 3º, IV da Lei 6.938/81 traz um conceito amplo de poluidor, considerado a "pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental". Por isso, no caso de existir mais de um responsável pela degradação, todos os causadores do dano e todos os que obtiveram proveito da atividade serão solidariamente obrigados à reparação, com direito à ação de regresso para distribuição das responsabilidades[11]. De notar que a empresa tem o dever de fiscalizar a segurança da barragem (artigo 4º, III da Lei 12.334/10).

Logo, a existência de laudo atestando o baixo risco da atividade, por se tratar de circunstância vinculada ao empreendimento, em princípio não obsta a responsabilização da empresa. De qualquer sorte, as pessoas contratadas para elaboração de parecer técnico também podem ser acionadas.

4. Qual o regime aplicável à reparação dos danos individuais?

Quanto aos danos a direitos individuais (vida, integridade física, saúde e propriedade, por exemplo) decorrentes do desastre ambiental, denominados de danos reflexos ou "por ricochete"[12], aplica-se o mesmo regime de responsabilidade civil dos danos ambientais: independe de culpa, é informada pelo risco integral e impede, em regra, a alegação de excludentes[13].

5. O Decreto 8.572/15, assinado pela ex-presidente Dilma Rousseff, que considerou como natural o desastre decorrente do rompimento de barragens, pode afastar a responsabilidade da Vale?

Não. O objetivo desse decreto foi regulamentar o artigo 20, XVI da Lei 8.036/90, de modo a permitir a liberação de recursos do FGTS para pessoas atingidas pelo rompimento de barragens. Ademais, um decreto não pode afastar regra legal (artigo 14, parágrafo 1º da Lei 6.938/81), tampouco revogar dispositivo da Constituição Federal (artigo 225, parágrafo 3º).

6. Além da Vale, seu presidente ou diretores podem ser responsabilizados?

Quanto ao presidente e administradores da empresa, em se tratando de responsabilidade civil, a execução dos indivíduos exige a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade. Isso porque a pessoa jurídica responde pelas suas ações ou omissões com seu patrimônio, que é separado do patrimônio dos sócios. Todavia, em determinados casos previstos na legislação, é possível atingir os bens dos administradores. No âmbito dos danos ambientais, essa desconsideração pode ocorrer se a personalidade jurídica da sociedade for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos ambientais (artigo 4º da Lei 9.605/98). Incide a chamada "teoria menor" da desconsideração da personalidade jurídica, a qual permite alcançar o patrimônio dos sócios em caso de insolvência ou incapacidade financeira da pessoa jurídica[14]. Logo, a responsabilidade civil do presidente e administradores da empresa que causa danos ambientais depende da falta de condições econômicas da pessoa jurídica, ou se a personalidade jurídica servir como obstáculo para promover a reparação, o que pode ser de difícil configuração para companhias de grande porte como a Vale. A desconsideração da personalidade jurídica pode também ser determinada para fins de responsabilização administrativa[15]. Diferente é o caso de responsabilidade penal, a ser analisada adiante.

7. O poder público pode ser obrigado a reparar os danos juntamente com a Vale?

Sim. O artigo 3º, IV da Lei 6.938/81 contempla a pessoa jurídica de direito público como poluidor potencial. Consoante orientação jurisprudencial consolidada, "a responsabilidade civil pelo dano ambiental, qualquer que seja a qualificação jurídica do degradador, público ou privado, é de natureza objetiva, solidária e ilimitada"[16]. O STJ também considera que a responsabilidade do poder público por danos ambientais, por omissão na fiscalização, é objetiva e solidária[17]. Todavia, o mesmo tribunal entende que, nesse caso, há execução subsidiária do ente público, o qual somente pode ser executado em caso de impossibilidade de cumprimento por parte do degradador[18].

A responsabilidade pode recair sobre a União, estado e município, pois o poder de polícia ambiental deve ser exercido, obrigatoriamente, por todos os entes da federação, e a omissão no dever de fiscalização gera responsabilidade objetiva do poder público[19]. Ideia reforçada pelo artigo 70, parágrafo 3º da Lei 9.605/98, pelo qual a "autoridade ambiental que tiver conhecimento de infração ambiental é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante processo administrativo próprio, sob pena de co-responsabilidade".

8. Qual ente da federação tem competência para o licenciamento ambiental para a exploração da barragem? E a quem compete conceder autorização para exploração de recursos minerais?

O licenciamento ambiental compete, como regra, aos estados, conforme artigo 8º, XIV da Lei Complementar 140/11. A competência da União e dos municípios é restrita aos casos previstos no artigo 7º, XIV, e artigo 9º, XIV, da mesma lei. Como o caso da Mina do Feijão não se enquadra nas hipóteses de competência federal e municipal, coube ao órgão do estado de Minas Gerais analisar o pedido de licença ambiental. Contudo, a licença ambiental não substitui outras autorizações necessárias para implementação de determinado empreendimento (artigo 10, parágrafo 1º da Resolução 237/97 do Conama). Assim, é exigida também autorização para exploração mineral, de competência da União (ministro de Minas e Energia ou Agência Nacional de Mineração, conforme o caso)[20].

9. A Vale pode ser responsabilizada administrativamente? Por qual ente da federação?

A responsabilidade administrativa em caso de violação das normas ambientais decorre do artigo 225, parágrafo 3º da Constituição Federal, do artigo 9º, IX da Lei 6.938/81 e do artigo 70 da Lei 9.605/98, pelo qual se considera "infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente". A competência para a definição de infrações e das respectivas penalidades é concorrente, com possibilidade de suplementação pelos demais entes da legislação federal (CF, artigo 24, VI, VII, VIII e parágrafos 1º a 4º). Ademais, a competência para aplicação das penalidades administrativas é comum às três esferas federativas (CF, artigo 23, III, IV, VI e VII.)

O artigo 17 da LC 140/2011 conferiu prioridade ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização para lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada. Isso, contudo, não afasta a competência comum para o exercício do poder de polícia das demais pessoas políticas[21]. Portanto, tanto o Ibama como o ente estadual e municipal detêm competência para promover sanções administrativas, prevalecendo no caso do acidente em Brumadinho a autuação do ente estadual.

10. É preciso provar a culpa do infrator para aplicar sanção administrativa?

Embora a questão seja controversa, o STJ reconhece, em julgados mais recentes, que a responsabilidade por infrações administrativas é subjetiva, isto é, depende da prova de culpa do infrator[22].

11. Eventual responsabilidade criminal depende de prova da culpa ou dolo do infrator?

A responsabilidade criminal é sempre subjetiva e depende de prova da intenção (dolo), como regra, e excepcionalmente, nos casos previstos em lei, também de prova da culpa por parte do infrator. Não há responsabilidade objetiva no Direito Penal brasileiro.

12. Quem pode responder por eventual crime ambiental? A empresa, os diretores e/ou o poder público?

Tanto o artigo 225, parágrafo 3º da CF como o artigo 3º da Lei 9.605/98 permitem a responsabilização criminal tanto da pessoa física como da pessoa jurídica, o que foi confirmado pelos tribunais[23]. O STF e o STJ entenderam que a pessoa jurídica pode ser condenada pela prática de crime ambiental, ainda que absolvidas as pessoas físicas ocupantes de cargo de presidência ou de direção, afastando a chamada "teoria da dupla imputação", que exigia a condenação das pessoas físicas para se permitir a punição também da empresa[24].

Controverte-se se o poder público pode ser condenado por crime ambiental, tema ainda não decidido pelo STF e STJ.

13. E quanto aos delitos não ambientais, como homicídio e lesões corporais?

Não há previsão legal para condenação criminal da pessoa jurídica para crimes não ambientais, de modo que apenas os indivíduos podem responder por eventuais acusações de homicídio e lesões corporais.

São esses os temas que se revelam mais palpitantes sobre as consequências jurídicas da tragédia de Brumadinho. A partir do caso concreto, foi feita uma análise das soluções fornecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, especialmente pela Constituição Federal, a legislação vigente e a jurisprudência do STF e do STJ. Muitas outras questões merecem esclarecimentos e estudos mais aprofundados, as quais, contudo, devem ser enfrentadas em outros escritos, diante das limitações deste artigo.

Rafael Martins Costa Moreira é juiz federal na 5ª Vara de Caxias do Sul (RS), professor de Direito Ambiental e Administrativo e doutorando e mestre em Direito pela PUCRS.


[1] STJ, REsp 1.260.923/RS, j. 15/12/2016.
[2] STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 198.
[3] STJ, REsp 1.374.284/MG, j. 27/8/2014.
[4] STEIGLEDER, p. 201.
[5] STJ, REsp 1.381.211/TO, j. 15/5/2014.
[6] STJ, EDcl no REsp 1.346.430/PR, j. 5/2/2013.
[7] STJ, AgInt no AREsp 1.211.974/SP, j. 17/4/2018; AgInt no REsp 1.419.098/MS, j. 15/5/2018.
[8] TRF-4, AC 5014268-84.2013.404.7205, 4/8/2015.
[9] STJ, REsp 1.346.430/PR, j. 18/10/2012.
[10] STJ, REsp 650.728/SC, j. 23/10/2007.
[11] STJ, REsp 18.567/SP, j. 16/6/2000; AgInt no AREsp 277.167/MG, j. 14/3/2017.
[12] STJ, REsp 1.381.211/TO, j. 15/5/2014.
[13] STJ, REsp 1.373.788/SP, j. 6/5/2014; STJ, REsp 1.454.281/MG, j. 16/8/2016; AgRg no REsp 1.421.163/SP, j. 6/11/2014.
[14] STJ, REsp. 279.273/SP, DJ 29/3/2004.
[15] STJ, RMS 15.166/BA, j. 7/8/2003.
[16] STJ, REsp 1.454.281/MG, DJe 9/9/2016.
[17] STJ, REsp 1.236.863/ES, j. 12/4/2011; AgRg no REsp 1.417.023/PR, j. 18/8/2015; REsp 1.376.199/SP, j. 19/8/2014; REsp 604.725/PR, j. 21/6/2005.
[18] STJ, REsp 1.376.199/SP, j. 19/8/2014; REsp 1.071.741/SP, j. 24/3/2009.
[19] STJ, AgRg no REsp 1.417.023/PR, j. 18/8/2015.
[20] CF, art. 20, IX; art. 176 e § 1º; Lei 13.575/2017.
[21] STJ, AgInt no REsp 1.484.933/CE, j. 21/3/2017; AgInt no REsp 1.530.546/AL, j. 7/2/2017.
[22] STJ, REsp 1.251.697/PR; AgRg no AREsp 62.584/RJ; REsp 1401500/PR, j. 16/8/2016; AgInt no AREsp 826.046/SC, j. 27/2/2018.
[23] STJ, REsp 564.960/SC, j. 2/6/2005; REsp 1.329.837/MT, j. 8/9/2015.
[24] STF, RE 548.181, j. 6/8/2013; STJ, RMS 39.173/BA, j. 6/8/2015.